Após 30 anos de silêncio, ele está lançando o livro 'Mea Culpa', no qual pede desculpas à mulher que amou e matou
Angélica Santa Cruz
Raul Fernando do Amaral Street tem 72 anos, é casado, pai de dois filhos, cumprimenta mulheres com um beija-mão, usa no dedo mínimo direito um anel de prata com o brasão de sua família - representado por um leão e seis meia-luas - e vez por outra surpreende pessoas que acabou de conhecer com a pergunta: "lembra do Doca Street? Sou eu...". Nos últimos dias , Doca concedeu baterias de entrevistas como parte da divulgação de sua versão para o crime que, segundo conta, ainda o atormenta a cada minuto do dia, o livro Mea Culpa - cujo momento mais eletrizante descreve como, na tarde de 30 de dezembro de 1976, descarregou sua Beretta 7.65 na namorada Ângela Diniz, uma mulher de 32 anos tão bonita que era descrita nas colunas sociais como "A Pantera de Minas":- Arrume suas coisas e vá embora, não agüento mais ver a sua cara, não sou sua propriedade.Falei que não queria ir embora, que tinha deixado muita coisa para trás e feito muitos planos. (...) Segurei suas mãos e pedi que reconsiderasse, nos amávamos, tínhamos que ficar juntos.- Me abrace, pelo amor de Deus, eu amo você!Ela me olhou, mas seus olhos não diziam nada.- Se quiser me dividir com homens e mulheres... - e aí ficou exaltada: - pode ficar, seu corno! E bateu a pasta com toda a força em meu rosto.Apesar da surpresa, por puro reflexo, virei um pouco o rosto. Fui atingido, mas a pasta escapou de sua mão e foi parar na porta do banheiro. Levantei-me e fui apanhá-la, a pasta estava aberta e minha arma estava no chão. Segurei-a firme e puxei a parte de cima, assustei ao ver a cápsula ser remetida para fora, sinal de que esteve sempre pronta para ser acionada. Quando me virei, xingando-a, já estava atirando. Disparei várias vezes de maneira mecânica. Não lembro de ouvir os tiros, estava louco, transtornado.Olhei assustado para a arma e deixei-a cair aos meus pés, olhando pela última vez Ângela, que desabara ao receber os tiros.Hoje um senhor de cabelos brancos, sujeito a chorar sempre que o caso vem à tona e alertado pela família com alguma freqüência para refrear os ímpetos de querer contar sua história mesmo diante de desconhecidos, Doca Street diz que escreveu Mea Culpa porque precisava contar tudo. E o tudo dele é o seguinte:"É um mea culpa por ter matado a Ângela - em quem eu penso com freqüência total, todo dia. Penso no sorriso maroto dela, na inteligência, na beleza. Por ter causado tanta dor na família dela, em uma mãe que perdeu a filha e nos filhos que perderam a mãe. Por ter feito a minha família sofrer tanto. Pela vida da Ângela ter sido remexida daquele jeito", explica ele.O livro que rompeu o silêncio de 30 anos de Doca é um conjunto de anotações feitas na cadeia, de 1976 até 1987, período em que ele diz que "escreveu para não enlouquecer". Narra uma fuga que durou 20 dias, varou 4 esconderijos, começou em Búzios - onde o crime foi cometido - e terminou em São Paulo. Conta o cotidiano barra-pesada em prisões do Rio e a convivência com integrantes da facção Falange Vermelha. Relata como ele, mesmo réu confesso, se transformou em celebridade , a ponto de receber pedidos de autógrafos na rua. Traz trechos comoventes, passagens confusas e pedaços repetitivos - mas impressiona mesmo quando mostra o relacionamento com Ângela Diniz e sua caminhada até a tragédia.PAIXÃO É COMO CACHAÇADoca diz que era bem casado com sua segunda mulher, Adelita Scarpa, com quem tinha um filho de três anos, vida familiar tranqüila, rotina com viagens a dois - e por quem, garante, era apaixonado. Aí conheceu Ângela, bonita, esperta, "felina", na época namorada do colunista Ibrahim Sued.Sobre Adelita, escreve frases amorosas como :"tínhamos nosso amor, nosso companheirismo". Sobre Ângela, usa explicações rasgadas como "paixão é como cachaça, só não tem AA" ou sentenças de bolero: "Ângela não saía da minha cabeça... seu cheiro de fêmea, o jeito de andar, de sorrir com os olhos faiscando...". Os mundos paralelos deixam Doca Street confuso até hoje, setentão de cabelos brancos. "Foi um período sofrido. Acho que deveria ter ficado com as duas! Sem sair de casa, sem tanta dor", diz ele.Os trechos dedicados a Ângela Diniz têm muita cocaína, muito sexo - muitas vezes a três, mas sempre descritos para leitores de todas as idades, em frases comportadas como "aí namoramos". E acabam por virar um relato de como vivia a grã-finagem dos anos 70, às voltas com casacos de vison e bebedeiras que começavam no café-da-manhã com uma veuve clicquot "geladinha" misturada com laranjada - tudo com pano de fundo teórico contra os usos e costumes da "burguesia careta".Doca dá tantos detalhes do gênero no livro que Marilena Pires Ferreira Street, sua atual mulher, tomou um susto ao ler os originais do livro. "Ela brincou comigo: mas Doca, era muito pó! A gente era muito louco mesmo", conta ele.A história de amor que descambou para a tragédia é definida por Doca como "um caso que saiu controle". No início, Doca via Ângela em horário comercial. Inventava viagens de negócios, pegava um avião e ia encontrá-la no Rio. Meses depois,foi em casa pegar as coisas enquanto Ângela esperava no carro e acabou flagrado pela mulher - mas saiu assim mesmo.Doca e Ângela embalavam em festas e quase sempre voltavam para casa depois que ele tinha algum acesso de ciúmes - por duas vezes, chegou a agredi-la. Às vésperas do revéillon de 1976, o casal estava na praia de Búzios e Ângela chamou uma vendedora de bolsas alemã Gabrielle Dayer para "passar em casa depois". Doca não gostou, os dois brigaram - e ele a matou. Gabrielle foi apontada como estopim. Anos depois, caiu das pedras na praia de Búzios e seu corpo desapareceu no mar."Ela não foi o motivo do crime. Era apenas mais uma de nossas briga, mas não tinha ninguém para separar. Se eu não tivesse enlouquecido, a gente ia se falar no dia seguinte", diz ele.NOME AOS BOISO caso Ângela Diniz foi um marco jurídico. Em um primeiro julgamento, em 1979, Doca Street entrou no fórum aplaudido por uma multidão e saiu em liberdade - depois que o jurista Evandro Lins e Silva recorreu à tese da legítima defesa da honra, vasculhou o passado de Ângela e a classificou em termos como " prostituta da Babilônia" e "vênus lasciva". Um ano depois, em um segundo júri, Doca entrou no fórum sob vaias de feministas, saiu condenado a 15 anos de prisão e virou símbolo de uma virada histórica, em que caiu por terra a alegação de que um homem pode matar uma mulher para salvar sua honra.Nas últimas décadas, Doca Street foi sinônimo de assassino passional que tentou transformar a vítima em uma devassa responsável pela própria morte. Foi citado no hit dos anos 80 "Nome aos Bois", dos Titãs, ao lado de nomes como o de Hitler; virou verbete de enciclopédias jurídicas; foi incorporado ao discurso das feministas. Agora, quer mostrar quem chama de "o verdadeiro Doca"."Todos esse anos me senti desconfortável com o Doca que construíram: gigolô, traficante. Não foram investigar minha vida, saber quais foram meus empregos. O Doca de verdade está no livro. Eu me exponho. Não tenho medo da verdade."O Doca do livro conta que concordou cabreiro com os argumentos que seriam usado em sua defesa, mas foi convencido de que eram as regras do jogo contra uma promotoria comandada por Evaristo de Moraes Costa. E fala que saiu constrangido do primeiro julgamento:Eu estava envergonhado. Sentia que tinha sido covarde, que devia ter impedido que me defendessem remexendo o passado de Ângela. Afinal, eu a amara muito. Dias depois, já em São Paulo, lia envergonhado e com tristeza uma declaração do Carlos Drummond de Andrade, da qual nunca mais me esqueceria: "Aquela moça continua sendo assassinada todos os dias e de diferentes maneiras".Em entrevistas no final da vida, Evandro Lins e Silva afirmou que defenderia Doca outra vez, mas não usaria a tese da legítima defesa da honra. Doca diz apenas: "eu não tinha o que fazer, tinha que concordar com o advogado.Mas fiquei muito envergonhado. Ninguém nunca me viu falar mal das feministas que se revoltaram contra isso".O livro também traz um episódio nebuloso Conta que, por três vezes, sua pistola apareceu com bala na agulha sem que ele a tivesse carregado. Nas duas vezes em que notou isso, ele diz que chamou Ângela e os dois conversaram sobre quem teria feito aquilo. Na hora do crime, notou que a arma estava de novo pronta para ser usada. Pode parecer uma suposição de Ângela teria feito isso. Doca garante que não é. "Não me escondo atrás de drogas ou de uma arma. Eu matei a Angela. A culpa é minha".Pouco antes do primeiro casamento de Doca, a mãe dele, Cecília, disse para a noiva: "você vai casar com um baita louco!". Herdeiro de uma família conhecida em São Paulo - o avô, Raul, construiu a fazenda onde hoje está a Vila Zélia e foi sócio dos Guinle -, Doca foi criado em uma fazenda no interior de São Paulo porque tinha asma.Aos 16 anos, fugiu de casa e foi fazer uma viagem pelo país. Ficou 9 meses sumido. O pai pediu ajuda da polícia e ouviu o retorno de um delegado: "seu filho foi visto pela última vez numa zona em Minas, comprando maconha". Aos 21 anos, Doca foi para a África caçar leões, o dinheiro acabou e, com U$ 100,00 no bolso, embarcou para os Estados Unidos. Fez bicos, foi professor de natação e boy do embaixador da Arábia Saudita ("a mulher dele era louca! Ficava pedindo desconto em caixa dos hipermercados", conta ele).Doca acha que foi atraído por Ângela Diniz porque os dois eram parecidos, mas até certo ponto. "Eu era um caipira. Fui criado na cultura de que a mulher do homem é dele. Ela era uma mulher do mundo. Não tive cabeça para acompanhá-la".Logo após descrever o momento em que enlouqueceu, Doca Street diz que sua vítima deve ser lembrada com respeito. Escreve: "Perdoe-me, Ângela".
Fonte: Folha de São Paulo
segunda-feira, 7 de abril de 2008
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