Um muro
transparente, de vidro, guarda a residência de um dos mais famosos agentes da
ditadura. Gaúcho radicado em Brasília, o coronel reformado do Exército Carlos
Alberto Brilhante Ustra foi o primeiro militar a ser reconhecido pela Justiça
como torturador. Nos três anos e quatro meses em que comandou o Destacamento de
Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi),
em São Paulo, 502 pessoas teriam sido torturadas no local e 50, mortas pelo
órgão. Ustra insiste, há décadas, em negar todas as acusações, apesar dos
inúmeros relatos de ex-presos e até de ex-agentes.
A tese de
defesa do coronel nascido em Santa Maria - que no fim da década de 1970 também
atuou no Centro de Inteligência do Exército, em Brasília, e comandou o 16° Grupo
de Artilharia de Campanha, em São Leopoldo - começou a ser escrita há 29 anos
pelo punho de sua própria esposa, Maria Joseíta. Em outubro de 1985, dois meses
após a então deputada Bete Mendes reconhecer Ustra como seu torturador - fato
que levou o nome do militar (na ocasião adido militar no Uruguai) às primeiras
páginas de jornais de todo o país -, Joseíta escreveu uma carta às filhas,
Renata e Patrícia, o que seria a introdução de um álbum dedicado às herdeiras
do casal. No lugar de fotos da família, recortes de jornais, documentos e
anotações, para que, no futuro, as filhas não se envergonhassem de carregar o
sobrenome do militar. Dali veio a inspiração para o primeiro livro do militar,
Rompendo o Silêncio, lançado em 1987, que reproduz e amplia os argumentos e
exemplos citados no manuscrito assinado pela esposa.
"Todos
dizem que foram torturados"
O senhor
responde a processos por tortura, sequestro e ocultação de cadáver, foi o
primeiro militar reconhecido pela Justiça como torturador. Nos três anos e
quatro meses em que comandou o DOI-Codi em São Paulo, dezenas de pessoas foram
mortas pelo órgão.
O senhor
tem dormido bem à noite?
Sempre
dormi. Graças a Deus, tenho dormido muito bem à noite. Nunca tive problema de
consciência, porque não fiz nada de errado.
O senhor
participou ou tinha conhecimento da realização de sessões de tortura no DOI-Codi?
Não. Eu
não participei e não tinha conhecimento de sessões de tortura. Isso não havia.
Excessos podem ter havido de ambos os lados. Não vou dizer para você que não
houve. Pode ter havido excesso de um lado, o cara perder a paciência... Isso
pode ter havido. Mas isso é explorado pela esquerda, que quer nos desmoralizar
com esse problema de tortura. Mario Lago (ator, autor e comunista) já dizia
isso: "Quando saírem da prisão, vocês sempre digam que foram
torturados".
Que
excessos podem ter sido cometidos?
Não me
lembro. Excessos... Eu não me lembro, assim, de excessos que podem ter
cometido.
Excessos
durante interrogatórios?
Cometeu-se,
às vezes, no ato da prisão. Pode ter sido. O cara reagia, brigava, havia luta
corporal... Você sabe, terrorista não é brincadeira. Não é fácil, entendeu? Mas
todos dizem que foram torturados. Uma das poucas que disse em juízo que não foi
torturada foi a Bete Mendes. No depoimento, chorou e disse que não foi
torturada. E assinou o documento com dois advogados de defesa presentes.
Chorou, disse que estava arrependida.
Por que
tantos anos depois, quando vocês se reencontraram no Uruguai (em 1985, Ustra
era adido militar e Bete, deputada federal) ela o acusou de tê-la torturado?
Aí, minha
filha, eu é que quero saber por que que ela mudou. Quando elas foram presas
eram umas crianças. Ela não, era maior (de idade).
Ela não
pode ter se sentido coagida, com medo?
Mas
coagida na frente do juiz, do júri, com pessoas assistindo, com dois advogados
ao lado? Todos os presos chegavam lá e diziam: "Eu fui torturado
horrivelmente". E ela se arrependeu, chorou. Ela esteve presa 20 e poucos
dias, era a líder do grupo que doutrinava. Eram meninos do secundário, 18, 17
anos. Fui ao general e pedi para entrar em contato com o juizado de menores.
Foi lá a dona Zuleika Sucupira, dava assistência e declarou: "Eles, aqui,
estão sendo muito mais bem tratados do que nós poderíamos tratá-los".
Depois, saíram de lá nenhum disse que foi torturado. Um pai até me escreveu uma
carta agradecendo pelo tratamento.
Mas o que
justifica a existência de inúmeros relatos de ex-presos e até de ex-agentes do
DOI-Codi (como o ex-sargento Marival Chaves e o ex-escrivão Manoel Aurélio
Lopes) que indicam que a tortura era uma prática comum no destacamento?
Olha,
esse escrivão diz que serviu no DOI de 1972 a 1978, (Ustra pega um jornal e lê)
"admitiu que houve torturas sistemáticas de presos políticos". Estou
olhando a fotografia dele. Não me lembro de jeito nenhum. Uma coisa tenho
certeza: pelo nome, da equipe de interrogatório ele não era. Uma coisa que a
gente levava a sério era a compartimentação: quem era do interrogatório, era do
interrogatório. Ninguém tinha nada que saber o que um e o que outro fazia. Ele
disse que viu por uma porta, com certeza, não teria entrado lá.
Agora,
esse sargento Marival serviu comigo uns dois meses. Esse cara, não sei o que
aconteceu com ele. Eu sei, mas não posso dizer por que ele está fazendo isso.
Não posso falar porque não tenho provas, mas sei por que aconteceu. Me consta
que ele foi comprado, que ele recebeu grana para fazer isso. Ele disse na
Comissão da Verdade que eu era senhor da vida e da morte. Ora, eu era senhor da
vida e da morte de quem, meu senhor?
O senhor
escreveu no seu último livro que "vidas humanas dependiam das suas
decisões".
Sim,
claro. A vida dos meus subordinados. Quando eu mandava meus subordinados para a
missão - e existiam várias em que eu ia - , muitas vezes, levava o capelão
militar para nos abençoar antes de sair. E nós partíamos para cumprir o nosso
dever.
Qual era
esse dever?
O dever?
Era impedir que a luta armada vencesse e introduzisse o comunismo no Brasil,
conforme eles estavam programados para fazer. Sim, esse era o nosso dever.
Nenhum comentário:
Postar um comentário